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segunda-feira, 8 de maio de 2017

Breviário de um medo


Ela era brava.
Muitos assim a julgavam. Arrojada, demarcada, feroz. Mas, apesar da complexa teia de nervos ágeis e da fronte intrépida e resoluta com que esses tantos a distinguiam, ela escondia um medo descomedido. Um bizarro temor que tempestuosamente violava a sua lucidez e todo o ar do peito.

Era uma angustia vil e bem primitiva o pavor que sentia pela fugacidade da água.
Gota por gota, essa passageira sem corpo, sem afectos, lembrava-lhe que a efemeridade, a brevidade das coisas, estende docemente a mão ao esquecimento. E acarinha-o a seu colo com a ternura de uma mãe. 

Temia tanto mais a brevidade dessa substância que pouco se deixa tactear, fixar ou conhecer, do que qualquer outra circunstância impetuosa que lhe ameaçasse verdadeiramente o corpo. Ou a vida.
Uma noite, mesmo tendo pressentido no breu denso de um arvoredo os olhos de um animal medonho, precipitou-se ingenuamente por um caminho. Uns passos seguintes, assaltada por vigorosos latidos, veio a conhecer a severidade do medo físico. Em nenhum destes instantes, contudo, daqueles ínfimos mas muito longos instantes em que atravessou a dureza temperamental do cão e o teve demasiado próximo, farejando-lhe a perna, igualou a aflição que sentia na evasão repentina das coisas.

O transitório, aquilo que não percorre o vagar dedicando-se atenciosamente ao mundo, abstrai-se facilmente no descuido. Por isso, perturbava-lhe tanto a indolente passagem da água na ribeira vizinha,   alheia aos cânticos grosseiros das rãs e à textura das pedras como a fuga repentina das chuvadas pelo solo nos campos.

A  leviandade e a desatenção da água,  a imaterialidade e a sua pouca presença, constituem oportunidades primorosas para aquilo que procuramos ignorar ou fazer desaparecer. Como num mergulho, é no silêncio leal desta cúmplice, impassível a súplicas e ao passar do tempo, que muitos escondem segredos, vergonhas ou arrependimentos. Lançam-lhe cadáveres e as armas que lhes sabotaram a vida. Na água, estes permanecerão inconsequentemente ancorados.
E por fim, esquecidos.


terça-feira, 18 de abril de 2017

terra-musgo


Com a audácia das plantas de meia luz que se determinam a vencer paredes, ela viveu longos anos com um desafino nos pulmões. Um piado grosseiro que não debilitava porém as gavinhas que a sustentavam viva.
Ainda jovem, alguém contou-lhe que a sua falta de saúde surgia por não permitir que o sol vigorasse no interior do peito. Depois disso, ela veio a distinguir com nitidez o cheiro escorregadiço a musgo quando suspirava e o amarelo frio do mofo que se estendia para além dos seus ossos.

Nunca entendeu que esse alguém se referia a uma crónica ausência de paixão em si.



Bebia então pela manhã uma forte infusão de hera-estrela para a sua bronquite. Enquanto sentia o calor da bebida estalar-lhe a pele, imaginava a planta verdejar e cercar o seu pequeno tórax, esperançando que a hera respirasse por um sol, como ela jamais conseguiria fazer.



sábado, 18 de março de 2017


Diziam dela que tinha um "bom coração" por sentir no seu, tão fortemente, as urgências do coração de outros.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Uma nortada

Com os anos aprendeu a conviver com o presságio que a interrompia continuamente. Ela sabia que iria morrer sozinha. 

Por algum motivo que se impôs com uma inexplicável força no seu percurso, passou grande parte da sua vida sozinha. Habituou-se a passar dias a perder a conta sem falar e sem fixar o olhar no de alguém. 

Vivia tão só. 




Recordava com tremenda dor as mãos meigas de sua mãe mimarem-lhe a cara e da paixão de um antigo amante quando se encontravam no alpendre. 
Sabia que jamais teria iguais presenças na vida. E sabia ainda melhor que tudo o que se sente pertence ao real.

Certa tarde, ouviu estas suas duas vozes conversarem na pequena sala de arrumos. Trémula, abriu a porta expectante. Encontrou apenas, pela vidraça fosca do quarto, uma escura tempestade que se aproximava de si vinda do Norte. 

Nesse instante não aguentou mais tantas ausências. 



Sentiu uma folha amassar-se no peito e precisou de ar. 
Correu pelo campo até cair esgotada, sem fôlego e com dores agudas nas pernas e no ventre. 
Qualquer dor física torna-se insignificante diante de uma dor emocional.



Era Inverno. A noite caiu cedo e trouxe consigo mais frio e ainda mais chuva.

Precisou tanto de alguém nesse instante como terá precisado certamente durante toda a sua vida.  Não teve força ou talvez motivação para erguer-se sozinha. Permaneceu imóvel , por horas, enquanto sentia a pele queimar-se na terra húmida e na impetuosa tempestade. A queimadura do frio não compete com a que deixa a solidão pelo corpo. Essa dor é soberana; aquela de se ver só.

Ninguém deu pela sua falta. Jamais alguém a procurou. 
Foi encontrada por um pastor quando o sol primaverou semanas mais tarde.

Morreu sozinha, porque todos morremos. Mas a morte somente a tocou porque a solidão chamou decidida por ela.  E é disso, precisamente, que todos temos tanto medo afinal.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Insónias

Certa vez, ainda criança, teve uma febre alta que lhe trouxe um par de visões medonhas e o sussurro da morte.

Desde então teme o silêncio.



Somente num ambiente barulhento sabe-se viva e por isso mudou-se para junto do mar. Percebeu que o som interrupto das ondas assenhorando-se do areal dissolve cada um desses sussurros.

"Sobrevivi à sua subtileza. Quando a morte quiser-me de novo terá de gritar alto por mim."


terça-feira, 13 de dezembro de 2016

o Pasmo e a Surpresa

Estima o fascínio com que vibras ao espreitar a primeira vez por uma janela.
Atende cada encantamento. São por eles que nos mantemos e não pelo mundano.
Cuida-os. Alimenta-os.
E em cada novo segundo, exalta-te repetidamente com a luz que por ali te invade.
Fixa cada tom. Cada vibração. Cada instante de luz.  És tu quem a faz também cintilar.
E quando chover, não lamentes as sombras. Entrega-te às gotas que pontilham o vidro e ao frio que te ondula a pele.
Abre a janela e expõe-te.
Deixa-te molhar.


quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Estrelas-de-Anis

O eco dos seus passos no soalho trazia-lhe tranquilidade. Recordava-lhe o bater do coração no peito da sua mãe. Esse conforto. Por isso, passeava pela casa nas horas em que o sol espreguiçava-se pelas vidraças.
Por isso, madrugava.


Antes de desaparecer descalça pela praia ela percorria toda a casa com os seus melhores sapatos. Aqueles que ecoavam melhor sem a desnecessidade dos saltos muito altos e sem a discrição dos sapatos rasos. Dedicava-se ao seu musical com aqueles seus sapatos afinados à medida de uma sola de madeira.




O amanhecer daquela casa pertencia ao seu sapatear e às faustosas lenga-lengas das aves no jardim.
Antes das criadas sacudirem as colchas pesadas pelas janelas do piso de cima e antes mesmo de cantarolarem pela cozinha lá em baixo, ela ocupava toda a casa.
Passo a passo.

No silêncio singular daquela hora ela gostava de sentir o seu peso no tabuado. De fazer ranger cada tábua e atravessar demoradamente cada degrau alcatifado das escadas.


Quando por fim o sol aquecia a casa, acordava o seu filhinho num sussurro:
"Vem comigo à despensa, meu amor" .
Sapateava pelo corredor das criadas apertando-o no seu peito. Esse conforto.


"Inspira fundo. Sente bem o aroma do anis e escuta este meu coração."
A despensa húmida das mercearias cheirava a especiarias doces como o cabelo do rapazinho quando dormiam abraçados pela noite.


"Filhinho, nunca afastes o encanto.
Todos os dias eu dou corda aos meus sapatos. É assim que desperto o meu."





segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Electricidade





- "Acreditas em fantasmas?"
Ou finges não sentir aquela presença que se agita acima do soalho da sala e que se envolve ainda pela cama tapada com aquela manta grosseira de lã?
Crês apenas no que a vista consegue fixar e somente naquilo que a temperatura do tacto identifica?

- "Isto não te arrepia?"
Eu sinto-a aqui. Uma atmosfera. E feminina.
Uma ocupação sem-corpo, como uma confissão das paredes.

- "Não sei se pressinto a tempestade que há uns dias se prepara no céu ou a presença da mulher que aqui habitou". Pouco importa. Terão certamente similar extravagância e a mesma intensidade emocional.

Continuo a percorrer cuidadosamente sozinha as divisões de sua casa.
Sozinha.
Será tudo isto que sinto afinal a minha própria carga eléctrica destabilizar o ar?