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domingo, 30 de abril de 2017

Ciano-verde {A minha avó}

Quando morreste fechei-te as mãos em redor de um pedra turquesa. Confiei entre as tuas palmas transparentes uma pedrinha redonda, azul firmamento, polida com o mesmo cuidado com que protegias-me as mãos pequenas ao caminharmos pela rua. 
Nesse dia, para ti por fim sereno, guardei a pedrinha no casulo dos teus dedos paralisados que dormiam sobre um peito demasiado anónimo. Aquele que tinha sido o teu peito, mas onde já faltavas.

Nunca cheguei a contar-te. As turquesas que usavas ao pescoço eram pontos luzentes de magia num mundo violento demais a ambas. Demasiado ríspido e alheado à nossa subtileza. 
Nós éramos duas meninas, avó. Duas meninas de idades distintas que fantasiavam em contos sobre o mar, coleccionávamos búzios pelos reflexos que faziam à luz e segredávamos às nuvens. Nesse teu colar eu via ainda, junto à respiração do teu pescoço, o Sol e um par de estrelas douradas em órbita.

As pedras de Hator e Ísis, deusas cujo colo são o trono real do céu que é afinal o ventre imenso de uma deusa mãe maior, são também amuleto de Yemoja, rainha africana dos oceanos. 
E é aqui avó, por estes quatro cantos do Universo, no infinito azul levemente esverdeado das tuas pedras mágicas, que sei que cuidas ainda das minhas mãos. Sei que as resguardas tão bem como fazias, num aflito aperto, ao atravessarmos o Rossio. 
Estas mãos, avó, que são hoje ainda tão pequeninas.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O+

Como tem vindo a ser hábito, também naquele momento ela dedicou-se em entregar tudo de si. Costuma pensar que se permite sentir demasiadamente a força da presença. Não encontra melhor expressão para definir aquela forma de ser inteiramente. Tantas vezes até chega a entregar a sua própria pele às circunstâncias. Esfola-se.

"Estou Presente."
E por essa razão, muitas vezes, ela esgota-se.

Foi o que sucedeu naquele quase Agosto de 42ºC em Lisboa.

Viveram poderosamente o parto. Vigorosos e assertivos. Ela e o seu filhinho, aquele bebé tão grande que cheirava a flores adocicadas já a seu peito.
Como qualquer fêmea ávida pela sua cria, beijou-o insanamente quando ele saiu de si. Beijou-o, como qualquer animal fareja finalmente um seu novo ser, fixando aquela nova matéria: um novo toque. Um novo odor.
"Então eras tu, meu amor, quem aqui já viva."

Minutos mais tarde, atrás de um curto cordão umbilical (quando se liga a alguém ela não permite grandes distâncias) nasceu a placenta. Agradeceu-lhe a dedicação e despediu-se. Foi neste instante que a morte estendeu-se pelo quarto de mãos demasiado ágeis e ensanguentadas. Apresentou-se distintivamente:
- "A hipotonia uterina consiste numa ineficaz contração do útero após a expulsão da placenta. Nesta condição, os vasos uterinos que uniam estes dois seres ficarão abertos, expostos, e suceder-se-á uma intensa perda de sangue materno."

Assim foi.
Sentiu uma tontura pulsar para fora de si uma torrente de sangue e esvaiu-se num forte cheiro a ferrugem, enquanto procurava uns braços em quem confiar o filho. Conheceu a hemorragia puerperal precoce duas horas depois de o filho nascer. Sem razões clínicas. Sem justificações lógicas senão aquelas que mais tarde construiu.

Ela esgotou-se.
Hemoglobina < 7 g/dl.
Leucócitos, eritrócitos e plaquetas. Plasma.

Depois de um prolongado desmaio, e de procurar sequiosamente a presença do bebé, vê chegar sangue fresco embalado a vácuo. Uma substância viscosa que integrou o sistema vascular de outro alguém. Que nutriu e oxigenou as suas células. Que participou da sua vida: ouviu a sua música, dançou. Emocionou-se. Lutou. Amou.
Aquele sangue que circulou por outras veias com o frenético pulsar de um coração (que ela espera apaixonado) entra na sua vida, gota a gota, através do seu braço.
Gota a gota. Gota a gota.
Durante toda a noite, gota a gota, 450 ml de cada vez.




Não há dia que ela viva sem reviver esta sua história.
Esta história que é tanto minha como de quem não sabe ser sua: quem doou-me o seu sangue.


Obrigada.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

o Pasmo e a Surpresa

Estima o fascínio com que vibras ao espreitar a primeira vez por uma janela.
Atende cada encantamento. São por eles que nos mantemos e não pelo mundano.
Cuida-os. Alimenta-os.
E em cada novo segundo, exalta-te repetidamente com a luz que por ali te invade.
Fixa cada tom. Cada vibração. Cada instante de luz.  És tu quem a faz também cintilar.
E quando chover, não lamentes as sombras. Entrega-te às gotas que pontilham o vidro e ao frio que te ondula a pele.
Abre a janela e expõe-te.
Deixa-te molhar.


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Salomé

Lembra-me de respirar antes de partir cada dia.  Ao entardecer, de noite...Pouco importa. Lembra-me apenas que o devo rigorosamente fazer todos os dias. 

"É hora, Cristina. Respira agora."
"Respira."
"Respira agora."

Todos os dias, minha querida. Não me dês excepção.  E lembra-me ainda que se somos todos siameses, somos todos ainda infinitamente estranhos uns aos outros. E estranhamente negligentes. Até connosco próprios.

De onde estás, desculpa-me.
Fui uma estranha para ti.
Descuidada.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Electricidade





- "Acreditas em fantasmas?"
Ou finges não sentir aquela presença que se agita acima do soalho da sala e que se envolve ainda pela cama tapada com aquela manta grosseira de lã?
Crês apenas no que a vista consegue fixar e somente naquilo que a temperatura do tacto identifica?

- "Isto não te arrepia?"
Eu sinto-a aqui. Uma atmosfera. E feminina.
Uma ocupação sem-corpo, como uma confissão das paredes.

- "Não sei se pressinto a tempestade que há uns dias se prepara no céu ou a presença da mulher que aqui habitou". Pouco importa. Terão certamente similar extravagância e a mesma intensidade emocional.

Continuo a percorrer cuidadosamente sozinha as divisões de sua casa.
Sozinha.
Será tudo isto que sinto afinal a minha própria carga eléctrica destabilizar o ar?

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Mãos Cruas. Aquilo Inexplicável

Nós parámos o tempo.

Parámo-lo com essas tuas mãos, rosas cruas de esperança. De amor.
Com essas tuas mãos famintas, sempre ávidas e tão deslumbrantemente vorazes.
Parámo-lo com essas tuas mãos tão cruas, tão cruas quanto as minhas.

Parámo-lo com este meu grande nervo, exposto nu, espalhado e vibrante por toda a superfície da pele.
Lembra-te, eu sou só um nervo que sente.
Só sente.
Como esse teu ainda maior nervo que sente.
Esse teu, que também só sente.

Nós parámos, vezes e vezes sem conta, o tempo.
Parámos essa infinita e ininterrupta série de instantes apenas com o olhar. O olhar cósmico, dominador, tão inexplicavelmente íntimo, tão inacreditavelmente real, que percorre galáxias, salta a barreira do som e do espaço. Aquele olhar tão irremediavelmente cru, tão depurado, instintivo, animal, que disputa os limites de cada corpo.

Nós parámos incessantemente o tempo.
Conservamo-lo intacto em sal. No sal desses nossos dois corpos. Desta nossa alma.
O sal do seu suor. O sal de cada lágrima.

Com o tempo assim parado, em suspenso, seríamos imortais.
Eu sei.
Mas a Terra encontra-se em contínuo movimento, e nunca sai da órbita.
A alma tão afastada da carne causa queimaduras dilacerantes e demasiado sal na pele outras tantas feridas vis. Irremediáveis.

Nós parámos o tempo.
Não soubemos morrer, até morrermos exaustos há instantes.